Por Valéria Reani Rodrigues Garcia
Nos dias de hoje, a palavra privacidade ganhou um significado completamente novo. Com o advento das novas tecnologias e das mídias sociais, o conceito de privacidade foi deturpado e corrompido, pois tudo está disponível para os olhos de qualquer um. Nada mais é privado, nossa vida agora é um livro aberto para qualquer um ler.
Com mídias sociais como o Facebook, a ideia de privacidade foi completamente destruída. Um exemplo é a condição de o Facebook permitir que todos vejam nossa localização, onde trabalhamos e atualizações constantes do que estamos fazendo.
Com as atualizações constantes do Facebook, as pessoas perdem a necessidade de comunicação presencial, e uma pessoa com quem você está apenas conectado, sem efetivamente relacionar-se, conhece toda a sua história de vida e rotina diária. Especialistas em Psicologia e Filosofia explicam isso como sendo uma “comunicação muito parecida com estar fisicamente perto de alguém e pegar seu humor através das pequenas coisas que ele faz”.
Privacidade, estar em “paz” e manter-se seguro online, nunca foi tão importante na sociedade digital. Um estudo da Universidade de Maryland descobriu que um ataque cibernético ocorre a cada 39 segundos.
Em um mundo cada vez mais conectado, com dispositivos de “internet das coisas” e alto-falantes inteligentes entrando em casa, a segurança e a privacidade na internet está rapidamente se tornando um aspecto da maior importância da vida cotidiana.
Dados pessoais
Informações ou dados pessoais são aqueles que estão
vinculados ou podem ser vinculados a pessoas físicas. Exemplos incluem
características explicitamente declaradas, como a data de nascimento de
uma pessoa, preferência sexual, paradeiro, religião, mas também o
endereço IP do seu computador ou metadados relativos a esse tipo de
informação.
Além disso, os dados pessoais também podem incluir aspectos mais implícitos como, por exemplo, dados comportamentais das mídias sociais, que podem ser vinculados a indivíduos. Os dados pessoais podem ser contrastados com dados considerados sensíveis, valiosos ou importantes por outras razões, como estratégias de negócio confidenciais, dados financeiros ou inteligência militar.
Os dados usados para proteger outras informações, como senhas, não são considerados em nossa reflexão. Embora tais medidas de segurança (senhas) possam contribuir para a privacidade, sua proteção é apenas fundamental para a proteção de outras informações (mais privadas) e, portanto, a qualidade dessas medidas de segurança está, fora do escopo de nossas considerações.
A verdade, sob o ponto de vista filosófico e psicológico, é que lutar para proteger a privacidade é um empreendimento. Claro, existem várias tecnologias ou técnicas que podem ser empregadas no esforço de proteger nossa privacidade. Entretanto, tal busca é como tentar cavar um buraco no meio de um rio que flui rápido. Os ricos e poderosos conquistam alguma privacidade apenas porque eles podem se dar ao luxo de “ensacar” suas vidas pessoais com uma espécie de armadura digital.
Embora muitos países, já possuam legislação de proteção de dados, precisamos repensar a privacidade no século XXI.
Trata-se, portanto, do debate de como vamos tratar a perda potencial de privacidade. Esta sim classifica-se como uma grande preocupação entre a esmagadora maioria dos cidadãos. Enquanto a privacidade não for considerada verdadeiramente um direito fundamental, continuaremos na mesmice hipócrita de preocupação com conveniência mercantil para garantir a economia mundial.
As economias são importantes? Sem dúvida, as economias são vitais. Mas é somente isso a que visa a luta pela privacidade e proteção de dados?
Na década antes das torradeiras se tornarem menos inteligentes do que os primeiros computadores pessoais, nos tornamos viciados no “rápido e fácil”. Os supermercados estavam abastecidos com refeições em caixa. Fast food entrou na moda de novos modelos de negócios e o mundo mudou para sempre. Não só queremos agora, como queríamos há cinco minutos, a comida bem como a privacidade.
Será que conseguimos ter ambas, privacidade e praticidade ao mesmo tempo?
A tecnologia se alimentou dessa mentalidade de fast food e nos transformou em aberrações de velocidade. Então os profissionais de marketing e vendedores de privacidade aprenderam a nos seduzir com descontos. Tudo o que temos que fazer é abrir mão de um pouco de informação pessoal aqui ou ali e pronto: 20% de desconto.
No entanto, “não há almoço de graça”, Edwin G. Dolan usou a frase no título do seu livro de 1971 “TANSTAAFL” (“There Ain’t No Such Thing As A Free Lunch — A Libertarian Perspective on Environmental Policy”, “Não há Almoços Grátis — Uma Perspectiva Libertarista da Política Ambiental”).
TANSTAAFL é uma forma popular de resumir o conceito do “custo de oportunidade”, que significa que tudo no mundo econômico (ou seja, tudo cujo acesso é de alguma forma limitado) tem um custo, mesmo que pago por terceiros.
Há algum problema nisso? Entendemos que sim, à medida em que todas as instituições e empresas são substituídas por uma intermediação algorítmica que tende ao monopólio, e, diante disso, nada mais justo que os usuários tenham o controle de seus dados.
Triste a realidade em ambiente digital, onde observamos a quebra do princípio da inviolabilidade à privacidade previsto na nossa Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso X, dispondo que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
Ocorre que, nos tempos modernos, em virtude do avanço da tecnologia e dos meios de comunicação, torna-se cada vez mais comum o desvio deste princípio, resultando em danos materiais e, principalmente morais, que muitas vezes trazem consequências irreparáveis em virtude da repercussão social de certos atos.
Diante disso, é de fundamental importância uma maneira lícita e eficaz de proteger, garantir e, principalmente, controlar a inviolabilidade à privacidade das pessoas para evitar a ocorrência de danos que muitas vezes se tornam irreparáveis.
O Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD), chegou trazendo na mesma onda a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), para institucionalizar a defesa da privacidade com foco proteção de dados pessoais.
Mas não basta a adequação e implementação as normas: como o Regulamento Geral de Proteção de Dados, ou a Lei Geral de Proteção de Dados brasileira, só para fugir de multas, ou outra sanção, de autoridades fiscalizadoras, para “inglês ver”, como diz o ditado popular. As empresas, corporações, entidades públicas e privadas precisam assumir a mudança cultural e por cumprimento legal, e princípio lógico no sentido de desistir das informações que pertencem apenas aos titulares de dados pessoais, que empresas lucram com matéria prima de outrem.
A questão aqui é que a pessoa de Direito público, Direito privado e nós, a sociedade como um todo, precisamos empunhar juntos e em alto tom a bandeira da proteção a privacidade enquanto existir alguma esperança de evitar a rápida erosão de nossas vidas pessoais.
Devemos, no despertar da lei, responsabilizar nosso governo e aqueles que possuem a autoridade para proteger as informações que eles não têm o direito de utilizar, pois os dados pessoais não lhes pertencem. É uma luta que vale a pena o esforço.
Pode ser uma tarefa exaustiva e frustrante, a princípio. Parafraseando Bill Gates: “Acredito que se você mostrar às pessoas os problemas e depois as soluções, elas se motivarão a agir”.
Felizmente, nós, brasileiros, já estamos entre os países que têm legalmente a preocupação com a privacidade e proteção de dados, e sobretudo existem medidas que os usuários podem tomar para manter nossos dados seguros sobretudo contra os hackers não éticos de forma a mantê-los longe de informações privadas.
Recentemente, testemunhamos o ataque hacker aos servidores do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Talvez tenha sido um dos incidentes de segurança mais graves envolvendo o setor público no Brasil. Esse evento foi relevante não apenas porque uma quantidade expressiva de dados foi indevidamente acessada e criptografada — com o atacante aparentemente pediu um resgate para a sua devolução, prática conhecida como ransomware —, mas também porque o ataque simplesmente paralisou as atividades do tribunal, alterando prazos de processos e cancelando audiências.
Vivemos a era de “O Fim do Esquecimento”, escrito por Jeffrey Rosen, em que o escritor explica uma situação de uma professora em treinamento que perdeu seu diploma devido a uma foto inapropriada dela postada no Myspace.
Portanto, o livro “O Fim do Esquecimento” afirma algo muito verdadeiro sobre privacidade no século XXI, de que agora vivemos a era em que nada é esquecido.
A falta de privacidade no século XXI tem sido tremendamente negativa, tudo o que uma pessoa posta, desde algo sem sentido até uma foto que você está marcado, está disponível para qualquer um ver. As mídias sociais evoluíram para tornar a mineração de dados muito mais fácil e conveniente para as pessoas que toda a sua vida está a apenas um clique de distância para quem está te procurando.
Stefano Quintarelli, que contribuiu na conexão da Itália à internet nos anos 80 e é hoje é membro do Conselho de Liderança da Rede de Soluções de Desenvolvimento Sustentável para as Nações Unidas e é membro do Grupo de Especialistas de Alto Nível em Inteligência Artificial da Comissão Europeia, alertou que tudo que puder ser conectado será conectado; todo dado que puder. Ser armazenado será armazenado e toda informação que puder ser processada será processada.
O que podemos fazer diante desse cenário?
Podemos alterar os efeitos negativos desse cenário por meio do total e irrestrito respeito aos quadros regulatórios já presentes em diversos países, incluindo o Brasil, com a Lei Geral de Proteção de Dados, de forma a adequar aos desejos da sociedade.
Finalmente, diante de um caso concreto, o importante ainda é usar o bom senso, ser sábio sobre como devemos nos comportar diante dos pequenos grandes detalhes da interação com a internet a exemplo de disponibilizar com responsabilidade nossas informações e dados.
Referência bibliográficas
DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais: elementos da formação da Lei Geral de Proteção de Dados. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.
GARCIA,
Valéria Reani Rodrigues. O impacto preliminar da Lei Geral de Proteção
de Dados brasileira nas relações de trabalho e os recursos humanos. In:
LIMA, Ana Paula M. Canto de; HISSA, Carmina Bezerra; SALDANHA, Paloma
Mendes (coord.). Direito digital: debates contemporâneos. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2019. p. 179-193.
Localização: SEN, CAM STF, TCDF, TJDFT
5 CIBERAMEAÇAS PARA AS QUAIS AS EMPRESAS PRECISAM SE PREPARAR ATÉ 2021, disponível em https://blogbrasil.westcon.com/5-ciberameacas-para-as-quais-as-empresas-precisam-se-preparar-ate-2021 , acesso em, 23/11/2020.
MOTA PINTO, Paulo. Direitos de Personalidade e Direitos Fundamentais: Estudos, op. cit., p. 642 e ss.
SOUZAS, Carlos Affonso Pereira “Ataque ao STJ é muito grave e consequências serão sentidas por muito tempo”, disponível em https://www.uol.com.br/tilt/colunas/carlos-affonso-de-souza/2020/11/06/o-que-o-ataque-hacker-ao-stj-ensina-sobre-seguranca-digital.htm acesso em 23/11/2020.
ROSEN, Jeffrey. The web means the end of forgetting. The New York Times, Nova Iorque. Disponivel em https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/20972/1/2016_IgorChagasCarvalho.pdf acesso em 23/11/2020.
VASCONCELOS, Cláudio Lins (trecho do livro “Mídia e Propriedade Intelectual: A Crônica de um Modelo em Transformação “, pp. 195-196, nota 69) — A Origem da frase ” Não existe almoço de graça” disponível em https://direitoemidia.wordpress.com/2010/09/10/leitura-de-fim-de-semana-a-origem-da-frase-nao-existe-almoco-gratis/ acessado em 23/11/2020.
Revista Consultor Jurídico, 27 de novembro de 2020, 6h33
Fonte: https://www.conjur.com.br/2020-nov-27/valeria-reani-reflexoes-respeito-privacidade-seculo-xxi